sexta-feira, 22 de junho de 2012

0 A Amazônia não está à venda

A idéia é baseada num teorema bem simples: a gigantesca cobertura florestal da Amazônia tem papel fundamental no equilíbrio climático e no ciclo das chuvas.

Lamentavelmente ausente do debate político-eleitoral, a questão ambiental finalmente conseguiu algum espaço na mídia em meio às eleições. Foi preciso, no entanto, que o tema viesse de fora do país - e travestido de ameaça à soberania nacional.

Pelo menos é assim que foi recebida a proposta de "privatização"de grandes áreas da Amazônia para impedir que o desmatamento da região continue a aumentar o risco de mudanças climáticas em todo o mundo. O plano, que teria sido apresentado pelo ministro de Meio Ambiente britânico, David Miliband, durante reunião no México, segundo um jornal britânico, prevê a compra de grandes áreas da Amazônia para proteger a biodiversidade e o clima global. Essas áreas seriam administradas por um consórcio internacional. A reação da imprensa brasileira foi imediata, o governo brasileiro se mexeu, Miliband desmentiu a história e a honra nacional foi salva.

Foi mesmo? A idéia de recorrer à iniciativa internacional para impedir que a contínua destruição da Amazônia coloque todo o planeta em risco não é nova. Andou circulando nos meios de comunicação lá pelo final dos anos 80, na boca da Eco-92, e desde então volta e meia bate na trave da mídia igual cobrança de falta do Ronaldinho Gaúcho.

A idéia é baseada num teorema bem simples: a gigantesca cobertura florestal da Amazônia tem papel fundamental no equilíbrio climático e no ciclo das chuvas. Os bilhões de toneladas de CO2 (gás que provoca o aquecimento global) estocados nas árvores amazônicas, se liberados para a atmosfera podem colocar todo o planeta em risco. O desmatamento é responsável por 75% das emissões brasileiras de gases-estufa e acabar com o desmatamento aumenta a segurança global. Como o Brasil (e outros países da bacia amazônica), carente de recursos, não conseguem ou não querem parar com a destruição da floresta, por que não criar um consórcio internacional que compre grandes áreas para preservação? CQD. A humanidade agradece.

A proposta de comprar a Amazônia para protegê-la, além de ingênua, é irrealizável e, em vez de ajudar, atrapalha os defensores da floresta, já que dá argumentos para os destruidores da região - que vêm em qualquer iniciativa de proteção do meio ambiente e dos povos tradicionais como manobra do 'imperialismo' e dos defensores da "internacionalização da Amazônia". A reação de alarme provocada pelo caso Miliband é um exemplo disso.

Em primeiro lugar, é preciso deixar claro: a Amazônia, como região, não está à venda. É patrimônio de 9 países: Brasil, Bolívia, Peru, Colômbia, Venezuela, Equador, Guiana, Suriname e Guiana Francesa. O nosso pedaço é maior (60% do total) - e também maior é nossa responsabilidade. Se o governo brasileiro - e a iniciativa privada que destrói a floresta em nome de um pretenso desenvolvimento econômico - não fizerem sua parte de forma consistente para conter o desastre, o pânico mundial quanto a mudanças climáticas tende a aumentar a pressão internacional sobre o Brasil, reduzindo cada vez mais o poder de negociação do país na arena global.

Vamos imaginar, porém, que você seja um comprador insistente, como o milionário sueco-inglês Johan Eliash, (que comprou baratinho as florestas da madeireira Gethal no rio Madeira), ou o milionário chinês Lu Weiguang, que diz ter comprado enorme área indígena no Mato Grosso (alô Funai, alô Polícia Federal!) ou mesmo os meninos da Google, que andaram há pouco por Manaus analisando a compra de florestas.

Dono da multinacional de artigos esportivos Head, o entusiasmado Eliash foi sem dúvida o inspirador da nova onda de privatização. Ele chegou a propor, numa convenção da seguradora Lloyds em Londres, a compra de toda a Amazônia. Segundo ele, as seguradoras gastam e gastarão mais com o pagamento de prêmios e indenizações resultantes de catástrofes climáticas do que o que ele considera ser o preço da Amazônia. Fico espantado que Eliash seja um empresário de sucesso: a conta que ele faz (baseada no que pagou por hectare) desconhece a lei básica dos negócios: a da oferta e procura. Bastaria que aumentasse a demanda por florestas amazônicas para que o preço da terra ficasse estratosférico.

Mesmo que a proposta de Eliash fosse possível, a compra do remanescente de áreas de floresta amazônica para proteção resultaria numa gigantesca escassez de madeira no mercado. Recurso escasso é recurso valorizado: seria preciso colocar um policial atrás de cada árvore para impedir a invasão do movimento dos sem-tora e de madeireiros ávidos. Imagine o conflito social e político resultante e a péssima repercussão na mídia global.

Um pouco de aritmética ajuda a clarear a fumaça: cerca de 33% da Amazônia brasileira são terras indígenas e áreas de proteção integral e uso sustentável. Por lei, essas áreas não podem ser comercializadas. Há ainda uns 6% ocupados por assentamentos. Disputar tais áreas é problema na certa. Do restante, cerca de 24% são de áreas privadas e 37% são públicas, sob "controle" da União, estados e municípios. Boa parte das áreas privadas é grilada ou tem sérios problemas de documentação. São um mau negócio e certeza de anos gastos em tribunais, enquanto a farra da destruição corre solta na mata. Além do mais, a grande maioria dessas áreas "privadas" já está desmatada - logo, não serve para o tal comprador de florestas em grande escala.

De olho nas áreas públicas, meu senhor? É absolutamente garantido de que nenhum governante - presidente, governador ou prefeito - será capaz de colocar à venda esse patrimônio público sem ter que enfrentar uma gigantesca revolta popular.

Mas nem tudo está perdido para o investidor. Pela nova lei de gestão das florestas, as terras com florestas públicas não podem mais ser vendidas - mas poderiam ser concedidas para exploração e uso responsável, desde que não sejam disputadas por comunidades locais e não sejam áreas de alto valor de conservação a serem protegidas.

O governo federal pretende dedicar, nos próximos dez anos, cerca de 3% das áreas públicas aos chamados "distritos florestais" onde a exploração seletiva do recurso florestal poderá ser feita de acordo com a lei.

Não é improvável que empresas internacionais se credenciem a disputar essas florestas, já que, segundo a Constituição basta a elas serem registradas no país e obedecer às leis para ter os mesmos direitos das empresas 100% nacionais. Essas empresas terão que pagar royalties para a exploração da área num prazo máximo de 40 anos. É admissível que empresas ou milionários interessados na conservação decidam pagar os royalties sem derrubar a floresta.

Embora politicamente inaplicável, a tese de privatizar a Amazônia tem pelo menos um mérito: alertar o governo e os brasileiros para a urgente necessidade de adotar medidas concretas para acabar com o desmatamento e conter a expansão do agronegócio e da indústria madeireira predatória na região. Foi a expansão descontrolada dessas atividades, aliada à transferência de grande números de colonos para a Amazônia, que resultou na destruição, nos últimos 35 anos, de uma área de floresta maior do que a França. Quando os cientistas foram fazer a conta do impacto dessa destruição contínua e muitas vezes oculta dos olhos da opinião pública (e discretamente celebrada cada vez que saem as estatísticas de desempenho das exportações de soja e carne), descobriram que o desmatamento havia transformado o Brasil no quarto maior vilão do clima global.

Nos últimos dois anos, a taxa anual de desmatamento da Amazônia caiu, revertendo uma tendência de alta que vinha desde 1997 e que teve seu pico no segundo ano do governo Lula, em 2004 (quando 27.200 km2 de florestas vieram abaixo, o segundo maior índice da história depois dos 29 mil km2 do início do governo FHC). Essa queda sem dúvida se deve a iniciativas do governo federal - como a criação de áreas protegidas e a repressão a atividades ilegais - mas também, e muito, à da crise no agronegócio e à supervalorização do real.

Apesar disso, a área anual posta abaixo pela sanha das motosseras continua alarmante, e os fatores que levam ao desmatamento (ênfase a um modelo econômico baseado em exportação de commodities para equilibrar as contas públicas, inexistência de verdadeira reforma agrária, injustiça social, fragilidade estrutural do estado, falta de estímulo a atividades sustentáveis etc) continuam vivinhos da silva.

Acabar com o desmatamento exige políticas públicas consistentes e de longo prazo, e passa por uma mobilização nacional que inclua a adoção de iniciativas de desenvolvimento responsável que beneficiem os 22 milhões de brasileiros que moram na Amazônia mas que mantenham a floresta de pé. Isso passa por uma revisão de prioridades no orçamento federal, com mais recursos públicos que permitam a criação e implementação de grandes áreas protegidas que mantenham sojeiros, pecuaristas e madeireiros longe da floresta.

Moratórias, como a recém conquista moratória no desmatamento para soja, ajudam a ganhar tempo para que o estado brasileiro se dedique a essa missão histórica: provar que é possível transformar "este país" numa potência econômica sem destruir a Amazônia.

A salvação da Amazônia, no entanto, passa também por uma mudança de postura internacional, já que é excessivo o consumo de produtos oriundos da região como a madeira, cujas exportações cresceram mais de 70% em volume e dobraram em valor no governo Lula, ou como a soja, que é cultivada em áreas desmatadas para depois ser exportada para alimentar frangos, porcos e gado na Europa e na Ásia. Essa mudança pode estar a caminho: basta que as empresas consumidoras européias aprofundem sua decisão de não comprar soja e outros produtos que contribuam para o desmatamento.

Se governos, instituições multilaterais e grandes empresários querem realmente investir na Amazônia para ajudar o clima global e o meio ambiente, a melhor maneira é colocar mais recursos em programas como o PPG7, o programa dos países ricos que carreia recursos para o governo brasileiro aplicar na Amazônia e Mata Atlântica; ou no Projeto Arpa, que promete criar e implementar 50 milhões de hectares de áreas protegidas e de uso sustentável. Uma boa aplicação de vultuosas somas de recursos seria no fortalecimento do Ibama, da Polícia Federal, da Funai, do Incra, já que preservação está diretamente ligada a governança. E também em projetos privados de recuperação e recomposição de reserva legal em propriedades rurais que hoje não respeitem a lei e em RPPN - reservas privadas de proteção.

Falar em pôr dinheiro para conservar as florestas pelo benefício que trazem para o planeta é o reconhecimento claro de que os serviços ambientais que elas proporcionam ao planeta têm valor monetário. Logo, que se pague por estes serviços ao Brasil e outros países em desenvolvimento que detêm as florestas. Com uma contrapartida, claro: de investir em desenvolvimento sustentável e conservação, de aumentar a governança e combater a corrupção.

Ou que se coloque recursos num fundo mundial destinado a ajudar os países em desenvolvimento, como o Brasil, a reduzir suas emissões de desmatamento, conforme propôs o governo Brasileiro em Roma, no início do mês de setembro.

Aproveite-se o entusiasmo e se lance um movimento internacional destinado a criar um fundo de financiamento para a criação e implementação da rede global de áreas protegidas e de uso sustentável prevista pela CDB - a Convenção da Diversidade Biológica - que permita aos países da ONU cumprir com as chamadas Metas do Milênio, que incluem a reversão da perda de biodiversidade até 2015.

Segundo cientistas e especialistas reunidos no último Congresso Mundial de Parques (Durban, África do Sul, 2003), precisamos de pelo menos uns US$ 20 bilhões de dólares por ano para isso, nos próximos 8 anos. Mãos à obra, senhores.

* Paulo Adário,coordenador da campanha da Amazônia, do Greenpeace

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